No fim de 2020, o Laboratório de Imunologia Comparada da Universidade Federal do Paraná (UFPR) resolveu criar uma vacina contra covid-19. A doença levava o mundo a uma das maiores pandemias da história, e entidades de fomento à pesquisa buscavam projetos de enfrentamento ao coronavírus.
Liderado pelo professor Breno Castello Branco Beirão, do Departamento de Patologia Básica, um grupo de cientistas propôs ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) um imunizante feito a partir de uma nanopartícula já estudada para outros fins na universidade. O nanomaterial receberia fragmentos do vírus da covid-19 e, em contato com o organismo, ativaria o sistema imunológico.
A proposta passou, e 15 pessoas (entre bolsistas, e servidores docentes e técnico-administrativos) trabalharam nos testes pré-clínicos, que também contaram com o apoio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
A produção do imunizante para os testes clínicos (realizados em humanos) deve começar em breve, segundo Beirão. A ideia é que o lote piloto seja feito em parceria com outra organização, cujo nome não pode ser divulgado até que o acordo esteja concluído, diz o pesquisador.
Embora a vacina ainda não tenha saído, o time comemora as lições adquiridas desde o primeiro experimento, e espera lançar um sistema vacinal inédito e inteiramente público, que poderá ser adaptado para outras doenças além da covid-19.
Nesta entrevista, Beirão fala desse aprendizado e das expectativas para seu projeto.
Como se cria uma vacina?
Breno: É possível produzir os componentes da vacina a partir de tecnologias usuais em pesquisa biológica. Mas a execução desses passos produtivos é lenta. Leva de semanas a meses para se conseguir uma primeira versão, e anos para se avançar a uma segunda ou terceira. O trabalho de bancada laboratorial é lento por natureza. Os pesquisadores passam dias a fio tentando fazer dar certo as formas melhores de se produzir o imunizante. Daí um equipamento quebra, e são meses de espera, então, mudamos o rumo e fazemos outro pedaço da pesquisa que precisa ser feito. Todo bom pesquisador precisa ter curiosidade, mas, no dia a dia, quem se dá melhor são os resilientes e as pessoas capazes de persistir quando temos a impressão de que está tudo indo errado. O exercício da pesquisa é de longo prazo, com longos períodos sem avanços significativos. Muitas vezes, encontramos dificuldades técnicas que parecem intransponíveis. Para os pesquisadores envolvidos, isso traz frustração, é muito tempo sem receber boas notícias. Ao contrário do que se imagina popularmente, em vez de momentos ‘eureca’, nosso cotidiano é composto por longos e árduos instantes de esforço repetitivo.
Há vários métodos de fabricação de vacinas, e a tecnologia usada pela UFPR se baseia em nanopartículas recobertas com partes da proteína spike do coronavírus. Que razões os levaram a optar por esse modelo?
Breno: Dentro das opções de tecnologias vacinais, o nosso está entre os mais baratos possíveis. Usamos ideias simples e usuais para produzir algo inteiramente novo. Temos as vantagens de uma tecnologia nova com as vantagens de processos bem conhecidos. Além disso, existe um valor intrínseco em se estudar novas tecnologias vacinais: nunca sabemos de antemão que utilidade terão contra as mais diversas doenças. Estamos trabalhando em vacinas contra três patógenos, mas pode ser que a maior utilidade da tecnologia só venha a ser conhecida daqui a anos, quando for testada contra a doença X ou Y. É importante darmos o pontapé inicial em uma nova tecnologia, porque ela poderá ser útil contra coisas que nem conhecemos ainda.
O uso de nanomateriais na produção de imunizantes cresceu muito durante a pandemia. Quais os diferenciais de uma vacina produzida com essa tecnologia?
Breno: As nanopartículas são usadas em vacinas por algumas razões. Em primeiro lugar, elas chamam a atenção do sistema imune, o que faz com que a vacina seja boa em induzir proteção. Além disso, elas retêm a vacina no local de aplicação, fazendo com que ela dure mais depois de aplicada. Isso dá tempo suficiente para que a resposta imune se crie. Por fim, as “nano” podem direcionar a imunidade durante sua ativação, induzindo respostas mais eficazes. Pode-se dizer que as partículas mudam o mecanismo imune ativado pela vacina. No nosso caso, a nanopartícula que usamos é muito barata, um benefício a mais na formulação.
Quais desafios vocês já sabiam que viriam pela frente e com quais dificuldades não contavam?
Breno: Sabíamos que a produção da vacina na nossa infraestrutura laboratorial seria difícil, mas se mostrou realmente impossível. Tivemos que buscar laboratórios parceiros fora da UFPR para conseguir produzir quantidade suficiente do imunizante para todos os testes necessários. Como pesquisador, também preciso levantar a discussão pública sobre como funcionam nossas universidades federais. Há muita burocracia e isso atrasa enormemente nosso trabalho. O exemplo mais palpável é a compra de materiais de pesquisa. Hoje, há uma espera de meses ou até mais de um ano para receber um insumo. Além disso, nosso país faz pouca pesquisa, e, assim, as próprias empresas fornecedoras são lentas em nos atender. Apesar de termos orçamento suficiente para a nossa fase do projeto, usar esse recurso na pesquisa não é trivial. Há amarras anticorrupção sendo aplicadas à pesquisa básica que são impraticáveis. Se quisermos ter qualquer chance de estar na ponta em pesquisa, isso precisará mudar.
O sistema vacinal da UFPR passará pelos testes clínicos e, quando aprovado, poderá ser utilizado para vacinas além da covid-19. Que formulações serão necessárias para adaptá-los a outras patologias?
Breno: Nossas nanopartículas podem facilmente receber frações do coronavírus assim como a de outros agentes infecciosos. Como estava explicando, a nanopartícula tem a função de potencializar a resposta vacinal, contribuindo para ela. Esse papel adjuvante deverá ser útil contra muitas outras doenças. Então, já estamos testando a vacina contra outras duas condições: o ectima contagioso dos ovinos e a raiva. O ectima pode afetar pessoas e animais e está presente em rebanhos de ovelhas em todo o Brasil. Ele causa dor, afeta a produção animal, e não há vacinas contra ele no país. Nossa solução está sendo bem-sucedida em controlar o vírus causador da doença e impede a imunossupressão que é típica do ectima. A vacina contra raiva ainda está em fase inicial, mas se pretende bloquear o vírus ainda nos morcegos, os principais transmissores silvestres. Hoje, precisamos abater morcegos para evitar surtos de raiva, e o plano é que a vacina torne essa prática obsoleta. A adaptabilidade da tecnologia é a pedra fundamental da proposta. Nossa vacina começou a ser desenvolvida com a pandemia em andamento, diferente do que ocorreu em outras instituições que já tinham uma plataforma vacinal para chamar de sua. Digo isso porque sempre soubemos que nossa vacina não seria lançada a tempo de contribuir diretamente na pandemia de covid-19. Nossa contribuição está em nos preparar para novas pandemias e atacar doenças que estão conosco o tempo todo. A ectima e a raiva são apenas o começo. Pretendemos prosseguir para a esporotricose [que aflige o oeste do Paraná e partes do Brasil], infecções por hantavírus, leptospira e muitas outras doenças locais endêmicas ainda sem solução.
Durante a pandemia, a UFPR lançou uma campanha de arrecadação para ajudar no financiamento da proposta. Quanto custa desenvolver uma vacina e com quanto disso o Estado consegue arcar?
Breno: A pesquisa em Ciências da Vida é custosa. Apesar de estarmos trabalhando com uma tecnologia vacinal de baixo custo, mesmo isso é relativo. Ela tem baixo custo frente a outras tecnologias, mas não custa pouco. Isso porque os reagentes que usamos precisam ser muito puros, por exemplo, e a pureza é traduzida em valor financeiro. Os equipamentos precisam ser muito precisos, as pessoas, muito bem treinadas. Assim, se quisermos fazer pesquisa realmente útil em Vacinologia, as coisas são caras, infelizmente. Além disso, a maioria é fabricada fora do país, o que atrasa entregas, além de obviamente elevar o custo e torná-lo flutuante, já que depende do câmbio. O estado tem sido o dono da bola em pesquisa biológica no Brasil, mas só tem levado as pesquisas até as fases preliminares de desenvolvimento, que é a parte mais barata. Temos falhado em levar mais produtos biotecnológicos adiante porque daí os custos de desenvolvimento se tornam proibitivos, o que é um desalento. Gastamos para desenvolver as tecnologias mas não as levamos até o final, até o público. A pandemia trouxe investimentos e trabalhadores interessados em completar o ciclo de produção das nossas biotecnologias.
Qual a dimensão da dependência nacional de vacinas, insumos e tecnologias estrangeiras de imunização?
Breno: Nossa dependência está na ordem de 90% do que consumimos na área de imunobiológicos. Países em desenvolvimento como China e Índia correram para se tornarem líderes em biotecnologia. Precisamos correr.
E o que falta para superarmos esse abismo?
Breno: Difícil dizer. A resposta deve ser a mesma para a pergunta: “como levamos o Brasil para o estado de país desenvolvido?”. Da minha perspectiva de professor, precisamos educar muito. Nossos alunos no ensino superior escrevem mal, nós, professores do ensino público, ainda não estamos atuando com as melhores metodologias de ensino porque nos sentimos despreparados, temos uma multidão de alunos. Temos que começar por aí, eu acho, temos que ensinar mais e melhor.Para além disso, precisamos de jovens talentos interessados em pesquisa de ponta e em trabalhar como pesquisadores de ponta.