Por Thais Basem Bastos, consultora em IA aplicada a negócios
Durante séculos, medimos o valor pelo tempo humano produtivo. O relógio era o medidor moral e de resultados da empresa: quanto mais horas trabalhadas, mais produtiva ela era. A Inteligência Artificial generativa quebra essa moral contábil.
Ela não substitui apenas braços por bytes — ela toca o campo onde justificávamos a folha de pagamento. Agora, precisamos entender que o valor do negócio não está mais em braços e horas, mas sim na capacidade cognitiva que realmente gera resultados.
A Inteligência Artificial deixou de ser uma promessa distante — ela já está reestruturando a forma como trabalhamos, quais habilidades importam e como as organizações operam.
De atendimentos automatizados a contratações feitas por algoritmos, os sistemas de IA estão cada vez mais tomando decisões que afetam milhões de trabalhadores no mundo todo.
No entanto, essa transformação traz questões críticas: como garantir que a IA potencialize — e não substitua — o potencial humano? Que tipo de proteções os trabalhadores precisam em uma economia movida por IA? E como construir sistemas que sejam inovadores e éticos ao mesmo tempo?
Deslocamento e criação de empregos: a dupla realidade
Algumas categorias de trabalho enfrentam forte risco de automação pela IA: tarefas cognitivas rotineiras, como entrada de dados, análises financeiras básicas e trabalhos administrativos; atendimento ao cliente, com o suporte de primeiro nível sendo cada vez mais feito por chatbots e assistentes virtuais; transporte, com veículos autônomos ameaçando milhões de motoristas em todo o mundo; e manufatura, com robôs inteligentes executando montagens complexas que antes exigiam destreza humana.
Estudos indicam que até 30% dos empregos atuais poderão ser significativamente transformados ou automatizados até 2030. Mas automação nem sempre significa eliminação — muitas vezes significa evolução e ampliação de funções.
Enquanto alguns empregos desaparecem, novas funções estão surgindo: treinadores e supervisores de IA, profissionais que ensinam, monitoram e aprimoram sistemas inteligentes; especialistas em ética, que garantem que os sistemas de IA tomem decisões justas e imparciais; designers de interação humano-IA, que criam interfaces intuitivas entre pessoas e máquinas inteligentes; e profissionais de governança de dados, responsáveis pela qualidade, privacidade e segurança dos dados usados em treinamentos.
Desafios éticos no trabalho guiado por IA
Sistemas de IA treinados com dados históricos podem reproduzir e ampliar preconceitos existentes. Um exemplo real ocorreu em 2018, quando a Amazon abandonou uma ferramenta de recrutamento baseada em IA que demonstrou viés contra mulheres.
O sistema aprendeu com padrões históricos de contratação que favoreciam candidatos do sexo masculino — e passou a replicar essa preferência. Empresas precisam adotar testes e monitoramentos rigorosos para identificar e mitigar vieses em sistemas usados para contratação, promoção e avaliação de desempenho.
Ferramentas de monitoramento baseadas em IA podem rastrear todos os aspectos da produtividade dos trabalhadores: registro de digitação e monitoramento de tela, análise de sentimento em comunicações escritas, rastreamento físico de movimentos em escritórios e armazéns e análises preditivas para identificar risco de desligamento.
Surge, então, uma questão crítica: onde está a linha entre gestão legítima de desempenho e vigilância invasiva? Os trabalhadores têm direito à transparência sobre o que é monitorado e como os dados são usados.
A necessidade de novas regulações trabalhistas
As leis trabalhistas atuais foram criadas antes da era da IA e enfrentam dificuldades para lidar com as novas realidades. É preciso garantir transparência algorítmica — os trabalhadores devem entender como sistemas de IA avaliam seu desempenho e tomam decisões sobre seu emprego.
Também é fundamental assegurar o direito à revisão humana: decisões críticas, como demissão, promoção ou sanção, devem incluir supervisão humana significativa. Além disso, os trabalhadores devem ter controle sobre os dados pessoais gerados durante o trabalho, e as empresas que automatizam processos precisam investir em requalificação dos profissionais afetados.
Algumas jurisdições já estão pioneirando proteções trabalhistas específicas para IA. A Lei de IA da União Europeia (EU AI Act) inclui regras de transparência em sistemas de IA relacionados ao emprego e exige supervisão humana obrigatória em aplicações de alto risco.
Nos Estados Unidos, estados como Nova York aprovaram leis exigindo divulgação obrigatória quando a IA é usada em processos de contratação.
Construindo ambientes de trabalho centrados no humano
Organizações podem adotar a IA de forma responsável seguindo alguns princípios: transparência acima de tudo, com comunicação clara sobre quando e como a IA é utilizada; preservação da dignidade humana, projetando sistemas que aumentem — e não reduzam — a capacidade humana; incentivo ao aprendizado contínuo, com investimento em desenvolvimento e transição dos trabalhadores; participação das partes interessadas, incluindo trabalhadores e sindicatos nas decisões sobre implementação da IA; e auditorias regulares para avaliar continuamente justiça, precisão e consequências não intencionais dos sistemas.
As organizações trabalhistas também estão se adaptando para defender os trabalhadores na era da IA. Sindicatos têm buscado cláusulas específicas sobre o uso de IA em negociações coletivas, incluindo requisitos de notificação, avaliações de impacto e garantias de proteção aos trabalhadores.
Conclusão: moldando um futuro de IA mais justo
A integração da IA no ambiente de trabalho é inevitável — mas seu impacto sobre os trabalhadores não é predeterminado. Com regulação inteligente, práticas corporativas éticas e forte representação trabalhista, podemos construir uma economia ampliada pela IA, que potencialize o ser humano em vez de reduzi-lo.
As questões centrais não são apenas técnicas — são profundamente humanas: que tipo de trabalho queremos preservar? Como garantir que a prosperidade seja compartilhada? E como fazer com que a tecnologia sirva às aspirações mais elevadas da humanidade, e não apenas aos interesses econômicos mais estreitos?
O caminho à frente depende da colaboração entre tecnólogos, formuladores de políticas, líderes empresariais e trabalhadores. Somente trabalhando juntos poderemos criar sistemas de IA que sejam ao mesmo tempo poderosos e justos.