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Dalton Trevisan: nosso vampiro mais quente

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Arte: Fábio Biondo

“Me leia enquanto estou quente,” disse Lygia Fagundes Telles a Clarice Lispector em 1977. A sentença, um apelo para que a lessem enquanto estivesse viva, ficou martelando na minha cabeça quando soube da partida de Dalton Trevisan, há pouco mais de um mês.

Se pudesse ser emprestada, ela caberia perfeitamente nas palavras de Dalton, pensei. Nas palavras, no plural, logo percebi. Imagino-a saindo da boca de todos os tarados daltonianos, da boca das putas desgracidas de primeira noite que ele criou, como também, na boca do próprio escritor.

Eu lembro das primeiras vezes que li Dalton. Aos 11 ou 12 anos, sentia que ficava ruborizada, vermelha, lendo e relendo. E pensava: “Meu deus do céu, ele pode escrever isso? ALGUÉM pode escrever isso?

Dalton podia. E então eu lia e relia meio escondido, entendendo as palavras e personagens, pensando que eles existiam em algum lugar.

Antes do Dalton partir, presenteei minha filha de 5 anos com um livro dele. “O Ciclista”, editado pela Reco-Reco e ilustrado por Odilon Moraes. “Dalton para crianças, quem diria?” pensei ao sair da livraria, com lágrimas nos olhos.

Era o momento certo para ela entrar no mundo do vampiro, na mesma provocação literária que me desafiou, mas dentro dos limites infantis. A sensação foi de alguma forma simbólica, como se passasse a tocha de uma leitura que transcende o tempo e que agora também seria o mundo dela.

Dalton Trevisan faleceu em 9 de dezembroem sua eterna musa, Curitiba. Às vésperas de completar 100 anos, trocou de editora. Em um movimento que, ouvi de um colega da área editorial, “soou tão misterioso quanto ele próprio”.

Depois de quase 50 anos na Editora Record, o vampiro vendeu seus direitos à Editora Todavia. E até os últimos dias de vida estava trabalhando nas revisões de seus escritos que serão publicados pela nova editora, como a Revista Piauí contou recentemente.

Todavia prometeu “Dalton como você nunca viu” quando fez o anúncio.

Na ocasião, a agente literária de Trevisan, Fabiana Faversani, disse que a comemoração do centenário teria “tudo que Trevisan tem direito”.

Inclusive ele, vivo, presenciando esse novo recorte das suas publicações.

A ironia foi a morte ter chegado antes. E a ironia maior é que, muitas vezes, a morte dá nova vida à obra de um autor.

Dados da Editora Brasiliense mostram, por exemplo, que as vendas de livros de Ana Cristina César, Paulo Leminski e Charles Bukowski aumentaram cerca de 70% no primeiro mês após suas mortes.

E é bem provável que Dalton siga esse mesmo caminho. Sua obra carrega um frescor que transcende o tempo – e a própria morte.

Sua realidade moral desordenada, quase anárquica, com um mundo cheio de compulsões, desejos, manias, taras, negações e renegações tem tudo para continuar sendo quente, e sendo lido.

A expectativa de quem já conhece todas as desgracidas e tarados de Dalton é pra saber como a Editora Todavia publicará a antologia prometida. A coluna tentou contato com Andre Conti, editor da Todavia, e não obteve resposta até o fechamento deste texto.

A ideia era saber o que muda agora, e como é editar um autor tão emblemático que até pouco tempo atrás estava revisando seus próprios escritos – e o Dalton tinha essa mania: revisar e editar à exaustão.

Chego à conclusão que “me leia enquanto estou quente” poderia mesmo ter sido dito por qualquer um dos machos tarados de bigodinho e olhos verdes ou qualquer uma das virgens imaculadas até segunda ordem que nosso vampiro criou, ou pelo próprio, mas não condiz com a realidade e coesão de sua obra.

A literatura de Dalton desafia até o frio implacável do tempo –  como um verdadeiro vampiro


Para ver e ouvir depois de ler: Videoclipe Piada Cruel, do Chame Chulo.

Produzido em 2008 pelo coletivo Destilaria Audiovisual (dos criativos Rodrigo Sakumoto Cook e Eduardo Ribeiro), os caipiras roqueiros do Charme Chulo entregam a essência de Dalton Trevisan em música nesta joia do audiovisual paranaense.

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Jornalista especialista em Mídia e Cultura pela USP

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